Pular para o conteúdo principal

A ignorância disfarçada

Imagem de burro


Não sei porque ainda me surpreendo quando vejo campanhas de cunho feminista sendo criticadas nas redes sociais. Como se pode admitir argumentos contrários aos seus quando não se pode enxergar além? Quando digo isso penso na imagem do burro, nome de animal que é usado como adjetivo para pessoa sem inteligência. Na verdade, o que lhe falta não é inteligência. Basta lembrar que, por ter uma visão panorâmica, ele é obrigado a usar uma viseira que faz com que ele só enxergue o que está na sua frente. Logo, as sombras e os lados, que poderiam espantá-lo ou fazê-lo mudar repentinamente de posição, são eliminadas. O burro tornou-se, portanto, sinônimo para ignorância, afinal de contas, ele já não pode ver além, tal como algumas pessoas. Falo isso pensando, por exemplo, na cultura do estupro. Conversa de feminista? Creio que não.
Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha com mais de 100 mil pessoas, 67% da população tem medo de ser vítima de agressão sexual; o percentual de mulheres que têm esse temor é de 90%, contra 42% dos homens. Isso mostra, no mínimo, que a mulher tem muito mais medo de ser violentada sexualmente que o homem. 
E o que será que faz com que a mulher tenha mais medo que o homem? Talvez o fato dela ser assediada sexualmente em quaisquer ambiente, e isso ser tido como algo normal. Ou talvez o fato dela não poder se vestir como quer, já que, estando "vulgar", ela está, na verdade, pedindo para que os homens a devorem com os olhos, e as vezes, com as próprias mãos. Ou ainda que o estupro é romantizado como algo bom, natural e prazeroso. Tudo isso faz parte da tal cultura do estupro, uma normalização de um crime que fere o corpo e a alma de quem está, de alguma forma, indefeso.
Para dar apenas dois exemplos fictícios, penso nas personagens de Camila Queiroz em Verdades Secretas, a Angel, e a mais recente personagem de Alice Wegmann em Ligações Perigosas, Cecília. De formas diferentes, ambas foram praticamente estupradas e isso foi romantizado pela mídia. Em hipótese alguma achar que ser forçada, seja através da força física ou por algum tipo de chantagem ou pressão psicológica, é algo natural ou benéfico para qualquer pessoa. É absurdo pensar que tudo isso é normalizado e continuamos repetindo comportamentos que só fortalecem esse tipo de coisa.
É absurdo nós mulheres acharmos que é errado vestir esta ou aquela roupa por motivos que não sejam desconforto com o tamanho/textura/modelo/ambiente (afinal, ninguém merece vestir uma roupa apertadíssima ou super folgada, ou que dê coceira, ou que desvalorize o corpo, ou que não seja adequado para o ambiente - cê não vai usar biquini numa igreja nem vestir-se dos pés à cabeça na praia, né, vamos combinar). É absurdo achar que a mulher que se veste de forma sensual, seja lá o que isso signifique, seja uma forma dela dizer que está buscando um parceiro sexual. E mesmo que isso seja verdade, de forma alguma isso dá o direito a qualquer homem de mexer com ela. É absurdo taxarmos de puta, de vadia, de piriguete a mulher que se veste como ela quer. E é mais absurdo ainda saber que eu, como mulher, por vezes, ainda acredito nisso!
Mulher não foi feita para isso ou para aquilo! É ela que tem que decidir quem ela quer ser, com quem ela quer ficar e como ela deve tratar seu próprio corpo! Não cabe ao homem nem a ninguém fazer essa escolha que é somente dela. E não se pode também tratar a vítima como culpada! Nenhuma mulher pede pra ser estuprada, estando de burca ou nua. Se fosse assim, milhares de mulheres no Oriente Médio não sofreriam agressão cotidianamente mesmo debaixo de metros de pano preto.
Não é a mulher a culpada pela violência, mas a sociedade como um todo por não aceitar essa realidade e ainda romantizar tal violência como uma forma de ajuda, de carinho, de amor. É fácil, quando somos tomados pela ficção da TV, por exemplo, acreditar que Cecília e Angel se tornaram mulheres quando foram na verdade abusadas por homens que não tinham o menor pudor, respeito e dignidade, nem com eles nem com ninguém.
Mas eu ainda tenho esperança de que muita gente ainda possa retomar as rédeas da própria vida, a ponto de recuperar a visão. E enxergar, quem sabe, um pouco além... 



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Diferenças de idade e Romeu e Julieta

Ontem estava dando uma olhada no tumblr e vi um post que me deixou intrigada. Era mais ou menos assim: " Romeu e Julieta é um dos romances mais belos do mundo. Ele tinha 17 anos e ela tinha 13. Hoje, se uma menina de 13 namorar com um cara de 17, todo mundo vai achar estranho e possivelmente discriminá-los. Só que se esquecem que  o amor, pra acontecer, não tem idade . " Tá, eu concordo que Romeu e Julieta seja um clássico e que o amor não depende de idade pra acontecer. Mas o problema, nos dias atuais, é que as pessoas confundem amor com paixão, atração, e mais comumente, com carência. Os namoros de hoje são baseados em coisas completamente erradas, pra ser mais exata. Acho que grande parte do mundo jovem se esquece do respeito ao próprio corpo, e por não se respeitar, acabam por fazer o mesmo com os outros ao seu redor, acreditando que os prazeres carnais de um namoro, ou mesmo de uma "ficada", vão satisfazer-lhe por mais de alguns poucos instantes ou mesmo a

Carta para a antiga eu

(Hannah Olinger/Unsplash) Olá, antiga Eu. É engraçado olhar pra trás e ver o quanto as coisas mudaram, a começar pela gente. Já não tenho mais o peso de antes e tampouco os fios de cabelo alisado. Nesse último aspecto, eu me orgulho um pouco mais por se tratar de um processo de autoaceitação que deu certo. A questão do peso ainda está em fase de (des)construção. Mas não é para isso que eu comecei a escrever essa carta. Na verdade, sequer posso dizer que haja um motivo específico. Talvez seja muito mais uma maneira de me reavaliar para saber o que que eu desejo que permaneça (ou não) na minha vida. Você deve se lembrar das tantas vezes que nós repetimos a máxima de querer ser adulto logo. Provavelmente esse tenha sido um dos nossos maiores enganos da nossa juventude. Por que sim, existem pontos positivos em ser adulto, mas eles vês junto a uma série de exigências e obrigações até então inexistentes. Por que nada funciona como uma comédia romântica onde tudo é resolvido no final. A vida

Apesar de tantos pesares, um fio de esperança

(Dmitry Ratushny / Unsplash) Diversas coisa me deixam indignada quando penso que sou brasileira. Me indigna o fato de que esta terra cheia de riquezas foi "fundada" com o sangue de negros escravizados e indígenas exterminados em prol da ganância do "nobre" europeu. Me indigna esse passado colonial que ainda se perpetua em diversos espaços da nossa sociedade e até mesmo em nossos padrões comportamentais - deixando passar o racismo nosso de cada dia velado sob a fantasia de que o Brasil é uma democracia racial. Me indigna o fato de que pessoas foram eliminadas graças a um regime ditatorial cruel e parte delas nem sequer chegou a ser devolvida a seus entes queridos para uma despedida digna. Um regime voraz em relação a qualquer um que lhe fosse contrário - afinal de contas, o que era contrário não merecia sequer o direito à vida. Me indigna como grande parte dos nossos políticos são eleitos com promessas de melhorias para os seus respectivos municípios, estados e até p