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Entre chatos, alienados e completos idiotas

De férias em casa, me peguei lendo uma Veja. A matéria de capa sobre o poder fulminante das redes sociais e a decadência de certos ícones me chamou atenção, apesar de todas as minhas ressalvas quanto àquele suposto de veículo de comunicação. A matéria, apesar de extremamente opinativa, como praticamente todo o conteúdo da revista, pareceu-me até sensata. Os exemplos das reações cada vez mais rápidas da TV Globo em relação aos escândalos que brotaram esse ano, mostram o quanto as redes têm, de fato, exercido um sério poder sobre os tradicionais veículos de comunicação e seus próprios posicionamentos frente às situações que lhe afetam diretamente.
Em seguida, porém, veio um artigo de J. R. Guzzo falando da impossibilidade de se existir um Nelson Rodrigues no Brasil de hoje. Isso porque, segundo ele, Rodrigues seria massacrado pelas redes sociais, com suas crônicas machistas, racistas e demais preconceitos antes naturalizados e agora veementemente criticados pelo que  denominou de Comitê Brasileiro de Vigilância do Pensamento. Tal Comitê seria responsável por julgar e incriminar todo tipo de preconceito, tornando as pessoas verdadeiras juízas de valores (como se isso fosse algo meramente atual) e obrigadas a se posicionar a respeito de qualquer tipo de preconceito e intolerância. O título do artigo "Um país de chatos".
Não consegui ler até o final porque acredito que quem banaliza qualquer tipo de luta social - como é no caso dos grupos feministas contra o machismo e dos grupos negros contra o racismo - ou é um completo alienado ou é um completo idiota.
Lembrei ainda de um congresso que participei há um mês atrás, em que uma professora falou sobre a dificuldade de algumas pessoas de entenderem o que é o racismo e o quanto ele ainda se perpetua em nossa sociedade. Numa sala de aula cheia de alunos brancos, ela mostrou dois vídeos. O primeiro mostrava a história de africanos escravizados sofrendo toda a barbárie que a maioria já conhece, mas que parece não gerar nenhum tipo de empatia. Afinal, foi há tanto tempo, não é mesmo? Coisas que nós, em pleno século XXI, jamais seríamos capazes de fazer (se é que não continuamos fazendo, de outras maneiras).
O segundo vídeo era o clipe do rapper e produtor musical Emicida, Boa Esperança, em que empregados de uma mansão, principalmente negros, se rebelam contra o sistema de humilhação o qual são obrigados a passar, num misto de indignação ancestral e vingança atual.
Adivinhem em qual das duas apresentações a turma se sentiu mais chocada e até indignada? Claramente, assim como suas peles brancas, foi no segundo. Inclusive houve quem dissesse de um tal racismo às avessas, algo como preconceito às pessoas brancas.
É tão engraçado, como também extremamente trágico o fato das pessoas só sentirem empatia quando se sentem representadas. Eu me arrepiei ao ver o clipe, pois senti empatia ao ver aquelas empregadas tomando o lugar das patroas e patrões. Eu consegui ver, pelo menos em parte, o sofrimento que elas e tantas outras pessoas com traços e pele negra passam até hoje, simplesmente pela herança genética estampadas em seus corpos.
Eu não queria ser a dondoca que no início do clipe tira o batom da mulata que antes tinha sido assediada pelo seu marido. Eu queria ser a velha empregada preta que cospe no prato em que aqueles brancos malditos iriam comer. Porque eu sinto nojo dessa nossa sociedade hipócrita que chama de chatos aqueles que lutam pela independência. Eu tenho pavor dessa sociedade de argumenta de forma vazia sobre o sofrimento alheio, quando na verdade não sente nada além daquilo que lhe afeta diretamente. Porque não tem compaixão, não tem respeito nem amor ao próximo.
Tenho vergonha de carregar um fenótipo que me privilegia em relação aqueles que não o têm. Tenho horror a me enxergar como diferente pela pele que carrego sobre mim. Porque mesmo não sendo preta, eu consigo ter empatia por aqueles que o são. E é isso que me torna diferente daqueles que acham que vivemos numa sociedade de chatos.
Porque é essa empatia que me faz compreender o sofrimento daqueles que são diferentes de mim. Mesmo que eu não sinta o que eles sentem, eu mantenho o respeito ao seu sofrimento e não deslegitimo de forma tão vil sua luta cotidiana.
Não se trata de uma sociedade de chatos, por questionarem questões que se perpetuam até hoje - como o machismo, o racismo, a intolerância religiosa e sexual -, se trata de uma parcela da população que tem lutado com muita garra pelo reconhecimento e, principalmente, pelo respeito.
Quando não há um pingo de empatia pelos outros, é impossível se falar de intolerância e preconceito, porque quem questiona, quem luta e quem é diferente e tenta legitimar tal diferença é tido como chato.

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